A transformação digital das nossas cidades visa tornar os serviços urbanos mais funcionais, mais sustentáveis e mais fáceis de utilizar para os cidadãos dos dias de hoje. Mas quem já trabalhou com um novo sistema de software ou um novo computador sabe como um simples erro pode destruir os nossos maiores planos.

As autoridades municipais podem não ser peritas em infra-estruturas TIC e sistemas de software, mas têm muitas ferramentas à sua disposição para obter esse conhecimento. Uma delas é a contratação pública, que permite às autoridades municipais obter bens, trabalhos e serviços junto de intervenientes de mercado especializados com muito mais conhecimento sobre estes elementos. Neste processo, as autoridades municipais não só tornam a sua cidade mais inteligente, mas também mais social.

Os compradores públicos são dos maiores investidores no mercado único europeu, despendendo dois biliões de euros anualmente em bens, trabalhos e serviços. Isso confere-lhes um imenso potencial para uma influência positiva no mercado mais alargado, tanto na perspectiva da procura como da oferta, exigindo que os fornecedores operem de forma mais sustentável e socialmente mais responsável.

As autoridades públicas usam os fundos públicos na contratação de mercadorias, trabalhos e serviços. A União Europeia (UE) criou um mercado de contratação pública bem regulamentado, com base nos princípios nucleares da transparência, igualdade e livre concorrência, de forma a assegurar que esses fundos não são mal gastos e que os concursos são justos. A contratação pública socialmente responsável (SRPP, na sigla em inglês) visa dar um passo além e responder ao impacto na sociedade das compras efectuadas pelo sector público. A SRPP visa implementar considerações sociais nos contratos públicos, de forma a atingir resultados sociais positivos.

A contratação pública socialmente responsável visa dar um passo além e responder ao impacto na sociedade das compras efectuadas pelo sector público.

A Comissão Europeia (CE) publicou recentemente o relatório Making socially responsible public procurement work: 71 good practice cases. Os 71 casos incluídos no relatório tornam visível o potencial da SRPP, revelando a forma como a contratação pode afectar o mercado alargado. Ao promoverem oportunidades de emprego, trabalho decente, inclusão social, acessibilidade, design para todos, comércio ético e conformidade com as normas sociais e ambientais, os compradores públicos podem aumentar a procura por bens, trabalhos e serviços “socialmente responsáveis”.

Os contratadores públicos podem ter um impacto especial em sectores onde controlam uma grande quota de mercado, como a construção, cuidados de saúde e transportes. Os contratadores públicos despendem cerca de 14% do produto interno bruto da UE e a sua influência não fica por aí. O relatório da CE também inclui casos relacionados com a limpeza e gestão de instalações, alimentação/serviços de catering, mobiliário, serviços de jardinagem, serviços sociais, têxteis e TIC.

O relatório destaca bem os desafios particulares com que os contratadores se defrontam na aquisição de serviços de TIC. Este tipo de equipamento passa por cadeias de fornecimento longas e complexas, atravessando fronteiras e indústrias nacionais e continentais, antes de se tornar num produto verdadeiramente concretizado e passível de ser utilizado. Essas cadeias de fornecimento estão invadidas por falta de transparência, aumentando o risco de os direitos dos trabalhadores serem violados. Simultaneamente, o relatório também demonstra que os compradores públicos não são impotentes face a estes desafios, existindo muitas medidas comprovadas que estes podem introduzir durante o processo de compras e que podem aumentar a transparência, estabelecendo a devida diligência como prática padrão. Essas medidas incluem um Código de Conduta, critérios sociais e cláusulas de desempenho de contrato. Além disso, existe um enquadramento legal que assegura uma verificação transparente e independente e a conformidade com estas medidas, o que permite a transparência entre as autoridades de contratação e os respectivos fornecedores.

Um bom exemplo disso é a Associação Catalã de Municípios (ACM), que representa 95% dos municípios da região espanhola. Esta instituição utilizou a sua contratação de gráficas para fortalecer os direitos dos trabalhadores na cadeia de fornecimento de electrónica. Os candidatos admitidos no acordo-quadro tinham de assegurar a conformidade com os direitos laborais e os regulamentos de segurança nas cadeias de produção das fábricas em que as mercadorias sujeitas a contrato eram produzidas. Para tal, tinham de efectuar a devida diligência para atingirem uma transparência da cadeia de fornecimento, colaborando com monitores independentes e solucionando as violações dos direitos laborais e normas de segurança. Os empreiteiros reagiram de forma positiva a estas exigências e forneceram informação detalhada da cadeia de fornecimento sobre os modelos específicos e locais de produção utilizados sob o contrato. A ACM contratou quatro fornecedores.

O relatório apresenta exemplos similares na Alemanha e Finlândia, demonstrando que os compradores públicos podem ter muitas e diferentes opções na aplicação da consideração social aquando da aquisição de hardware de TIC. Mas existe outro caso na Finlândia que é ainda mais esclarecedor, centrado na contratação de serviços de software. A agência nacional finlandesa para a educação precisava de encontrar um fornecedor para renovar três dos seus websites. Sabendo da procura crescente por pessoas com incapacidade, em particular, com deficiências visuais, de perceberem, compreenderem, navegarem e interagirem com o ambiente on-line, a agência pediu aos fornecedores que descrevessem a forma como a sua oferta iria garantir uma abordagem centrada no utilizador e que tecnologias iriam utilizar para assegurar a acessibilidade. Isso, em última análise, levou a um website que pode ser utilizado por mais pessoas, contribuindo para uma internet mais inclusiva.

No processo, a agência também poupou tempo e dinheiro. A integração dos requisitos de acessibilidade desde o início significou que não havia necessidade de alterações drásticas na concepção das etapas finais. Isso corrobora uma das principais conclusões do relatório da CE: a contratação pública socialmente responsável pode tornar a sua cidade mais inclusiva e eficiente trazendo, simultaneamente, benefícios financeiros. Isso torna-a numa ferramenta valiosa para qualquer cidade “inteligente”.

A publicação deste artigo faz parte de uma parceria entre a Smart Cities e o ICLEI – Local Governments for Sustainability, e foi originalmente publicado na edição de Janeiro/Fevereiro/Março de 2021 da Smart Cities. Disponível em inglês.