Inquéritos e diagnósticos, balcões de apoio e divulgação, comunidades de energia renovável, incentivos e medidas de eficiência energética fazem parte do repertório de soluções que auxiliam o combate à pobreza energética, um combate a que municípios e outros agentes locais não podem ser alheios.

Em Março deste ano, o Conselho Europeu e o Parlamento Europeu incluíram, pela primeira vez, uma definição europeia de pobreza energética no âmbito do plano de redesenho da Directiva de Eficiência Energética. Desta inclusão, resultou uma declaração clara de que os Estados-Membros terão de adoptar medidas de alívio à vulnerabilidade energética por via da melhoria do desempenho energético das habitações e da criação de mecanismos de apoio financeiro e técnico, incluindo a dinamização de one-stop-shops.

Em Portugal, a versão da Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética (ENLPCPE) apresentada a consulta pública no primeiro trimestre de 2023 coloca a tónica desta luta em quatro princípios orientadores: aumentar o desempenho energético das habitações, reforçar as condições de acesso a serviços energéticos, reduzir encargos com o consumo de energia, e melhorar o acesso à informação e ao aconselhamento. Embora continue por aprovar, a Estratégia evidencia já o papel directo e indirecto dos municípios, enquanto agentes de proximidade, na resolução deste problema que afecta, segundo os dados deste documento, entre 1,8 a três milhões de pessoas em Portugal. Mas, para isso, é preciso conhecer a realidade destas pessoas.

Sabemos que a pobreza energética resulta de uma combinação de factores – qualidade e desempenho energético das habitações, rendimentos desajustados às necessidades energéticas, preços da energia – e há já, quer a nível europeu, quer a nível nacional, indicadores e ferramentas que podem ajudar a diagnosticar o problema. É o caso do dashboard de indicadores do Energy Poverty Advisory Hub (EPAH), disponível on-line, ou do Índice de Vulnerabilidade à Pobreza Energética, um instrumento desenvolvido pelo CENSE – Center for Environmental and Sustainability Research, da Universidade Nova de Lisboa, que mapeia as 3 092 freguesias portuguesas para a vulnerabilidade no Verão e no Inverno, e ainda o caso de inquéritos que incidem sobre elementos relacionados com esta temática.

Não obstante, limitações relativas ao acesso aos dados e à sua representatividade dificultam “análises de resolução espacial e temporal mais interessantes”. Quem o diz é João Pedro Gouveia, investigador do CENSE, para quem a identificação das diferentes vulnerabilidades regionais, dos diferentes contextos, dos edifícios, das habitações e das pessoas mais vulneráveis é um dos “principais problemas no diagnóstico da pobreza energética”, repercutindo-se, depois, no planeamento e na implementação de soluções. E é, explica, alimentado pela negação do acesso a dados, como acontece com os relativos à certificação energética ou aos provenientes de contadores inteligentes, e pelo facto de muitos dados não serem recolhidos de forma regular e/ou serem apresentados com atraso. “É preciso reconhecer o problema e diagnosticar”, realça o especialista, mas, afinal, como podem os agentes locais fazer parte da solução?

CHEGAR À RAIZ

Para alavancar a “importante” análise territorial mais fina à escala regional, local e da freguesia, João Pedro Gouveia aponta para uma ferramenta que pode ajudar os agentes locais a chegarem à raiz do problema da falta de dados. “No EPAH, publicámos um guião para o diagnóstico, passo a passo, e [nele sugere-se] claramente a conexão com diferentes departamentos de um município ou de uma freguesia, de acção social, de ambiente, de planeamento, etc., para tentar recolher alguns dados locais diferentes que possam ser relevantes, mais bottom-up. Não é fácil, mas só fazendo, testando, promovendo estes trabalhos é que também conseguimos ir olhando mais fundo”, argumenta.

Nesse sentido, o investigador apresenta três projectos a decorrer em território português para melhorar este diagnóstico, projectos que foram seleccionados pelo EPAH no âmbito de uma chamada a assistência técnica para capacitar agentes locais. Um centra-se no desenvolvimento de uma ferramenta de diagnóstico e mapeamento aplicável a larga escala e replicável que vai ser desenvolvida pela região Centro e testada no município de Arganil. Outro refere-se a uma iniciativa da União de Freguesias da Baixa da Banheira e Vale da Amoreira (concelho de Moita) que visa o diagnóstico envolvendo o centro de saúde local, explorando também a ligação entre a pobreza energética e os impactos na saúde e o papel dos médicos na referenciação e no encaminhamento de casos para apoios.

Há ainda um projecto seleccionado no ano passado, já mais avançado. Neste, a freguesia de Mértola, a Associação de Moradores do Centro Histórico de Mértola, o CENSE e, enquanto especialista nacional, o Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, trabalham no sentido de fazer um “diagnóstico mais profundo”, por um lado, quantitativo, com recurso a indicadores de mapeamento e identificação regional do nível de vulnerabilidade, e, por outro, qualitativo, com a realização de entrevistas aos moradores para que se perceba a “experiência vivida” destes. A ideia, explica João Pedro Gouveia, é recolher relatos de problemas que as pessoas – “famílias, idosos, famílias mais carenciadas que vivem em habitações sociais” – experienciam, como infiltrações, humidades, ou até “escolhas” por o orçamento ser limitado, e informações sobre os seus comportamentos decorrentes da necessidade de aquecimento e/ou arrefecimento das habitações. “Se houver uma identificação muito alargada de que o problema está muito na falta de qualidade ou eficiência energética do edifício, ou nos equipamentos utilizados, por exemplo, será possível apontar para soluções interessantes nas quais a junta ou até a câmara municipal poderão intervir no futuro. É esse o nosso objectivo, apontar para soluções, e com uma parte também sempre de capacitação.”

Balcão do Porto Energy Hub. Foto: © Filipa Brito CM Porto

Reportando a mesma questão da falta de informação, Rui Pimenta, vogal administrativo executivo da AdEPorto, reforça que “todo o trabalho que possa ser feito pelas autarquias em termos de caracterização e diagnóstico desta realidade é essencial”. Outra vertente deste trabalho pode passar pela promoção de inquéritos à população e, quanto a isto, as agências de energia AdEPorto e Lisboa E-Nova desenvolveram um inquérito “na óptica de fazer uma primeira caracterização” das dificuldades e dos locais onde residem as pessoas mais vulneráveis – isto para as cidades do Porto e de Lisboa, embora haja intenção de dar sequência ao projecto e até de alargá-lo a outros territórios. “A partir daí, podemos pensar em identificar medidas que realmente possam ter uma boa aceitação e uma boa implementação junto destas famílias mais vulneráveis, ou, pelo menos, que possam estar enquadradas dentro desta realidade.” Este inquérito, cujos resultados estão publicados em pobrezaenergetica.pt, permitiu aferir já, por exemplo, que “uma grande dificuldade é a falta de literacia sobre todos estes temas”, pelo que medidas de sensibilização e divulgação de conhecimento serão também um dos pilares onde, na opinião dos especialistas, os municípios deverão actuar.

ONE-STOP-SHOPS EM PORTUGAL

Na ENLPCPE, a área de actuação prioritária “informação, conhecimento e educação” deve ser alavancada por via de campanhas de sensibilização, de divulgação de apoios e de disponibilização de estruturas de aconselhamento e auxílio. Estas estruturas podem surgir como gabinetes de apoio local que, segundo João Pedro Gouveia, surgem como relevantes por tentarem colmatar, numa lógica de proximidade, constrangimentos como “a falta de conhecimento no geral das pessoas [em relação a programas de apoio], a iliteracia energética e, em muitos casos, a iliteracia tecnológica [que dificulta o acesso a apoios]”. Para o investigador, estas one-stop-shops têm sido uma aposta por parte de alguns agentes locais.

As câmaras municipais de Setúbal, de Palmela e de Sesimbra, bem como as juntas de freguesia dos respectivos concelhos, a agência ENA (da Arrábida), a rede nacional RNAE, a Fundação Calouste Gulbenkian e o CENSE, por exemplo, estão a avaliar o fim da fase piloto do projecto Ponto de Transição, um contentor marítimo reutilizado que tem sido deslocado por vários locais (bairros sociais, por exemplo) para fornecer aconselhamento e informação sobre facturas, intervenções e programas, apoio às candidaturas, bem como avaliações energéticas gratuitas das habitações que são feitas por uma bolsa de Agentes de Transição, isto é, cidadãos da comunidade local capacitados para tal. Para João Pedro Gouveia, a iniciativa, que já apoiou mais de 500 famílias e realizou cerca de 150 avaliações energéticas, tem como pontos fortes o facto de ter na sua “génese” a ideia de “proximidade móvel” – explorando as melhores formas de chegar à comunidade sem consumir demasiados recursos permanentes de cada município –, um carácter visual apelativo e uma conexão com várias entidades locais, o que ajuda a manter a estrutura em termos de financiamento depois do tempo previsto. “E tem funcionado, sendo que vamos explorar nos próximos meses como é que podemos replicar o projecto”, adianta.

Entre ferramentas “com a mesma ideia de apoio de proximidade” já disponíveis no país, onde se incluem também uma linha de apoio da Coopérnico associada ao projecto PowerPoor, um ponto de contacto da DECO e um gabinete da AREANATejo, João Pedro Gouveia destaca ainda a iniciativa Porto Energy Hub. Trata-se de um balcão único on-line e físico de serviços integrados promovido pela AdEPorto que pretende actuar a nível da reabilitação do edificado da habitação e propor medidas que promovam o conforto térmico. “Prestamos um conjunto de apoios que estão identificados como sendo relevantes para uma grande fatia da população. Pretendemos, depois, ir mais além e fazer até visitas às próprias casas das pessoas e fazer auditorias para optimizar as possíveis medidas de eficiência energética e conforto térmico”, descreve Rui Pimenta, referindo que aqui, tal como no reforço da comunicação destes serviços, a parceria entre agências de energia e municípios pode ser frutuosa.

ENVOLVER A COMUNIDADE

Na promoção de uma transição energética inclusiva e justa, uma das soluções frequentemente discutidas é a implementação de comunidades de energia renovável (CER), por expandir o potencial do autoconsumo além da independência energética e da redução de facturas de energia no sentido de empoderar e envolver os cidadãos numa comunidade, criando sinergias e fomentando a sensibilização. Ainda que este ideal seja muito apelativo quando se pensa na necessidade de aliviar a pobreza energética, João Pedro Gouveia diz que ainda são poucas as CER que, por estarem a dar os primeiros passos, são capazes de integrar verdadeiramente famílias mais vulneráveis. Uma das que pretende fazer isto mesmo situa-se na freguesia do Lumiar, no bairro de Telheiras, e também recebeu assistência do EPAH. Parte do interesse do grupo Parceria Local de Telheiras e conta com o apoio da freguesia do Lumiar, do CENSE e da Coopérnico, tendo em vista reunir 17 participantes, sendo que três serão famílias vulneráveis, para beneficiarem de 7,4 kWp de potência instalada resultante da instalação de 16 fotovoltaicos, para já, no telhado de um edifício municipal.

Reconhecendo que Telheiras “não é a freguesia mais vulnerável à pobreza energética em Lisboa, pelas suas características socioeconómicas e por ser um bairro mais recente”, João Pedro Gouveia lembra que a “lógica triangular” de juntar cidadãos interessados, governos locais (que investem e ajudam a identificar as famílias vulneráveis) e especialistas vai permitir avançar efectivamente e, assim, mostrar que estes modelos podem funcionar.

COMBINAR ESTRATÉGIAS

De Norte a Sul do país, há exemplos de projectos que tentam lidar com as diversas dimensões e facetas da pobreza energética e, além de se promoverem diagnósticos, one-stop-shops e CER, os municípios, ainda que limitados em termos de actuação no sector privado, também têm ao seu alcance a promoção de intervenções mais ou menos profundas nas habitações, sobretudo as de natureza social, e de incentivos.

Rui Pimenta exemplifica como na iniciativa Energia e Conforto para Todos, na qual a AdEPorto participa, associados a um inquérito exaustivo aos munícipes do Porto e de outras autarquias em redor “para caracterizar as diferentes realidades e identificar aquelas que possam ser mais prementes em termos de actuação e nas quais um pequeno investimento se possa traduzir numa alteração significativa em termos de conforto térmico” estão disponíveis 100 mil euros para se realizarem investimentos directos em medidas com maior impacto, como auditorias ou substituição de equipamentos, para apoiar famílias mais vulneráveis. Quanto a “pequenos incentivos que possam promover a eficiência energética e a penetração de energias renováveis”, Rui Pimenta ilustra que, na parte da reabilitação dos edifícios, ainda não existem grandes exigências e que, aí, “o município pode, sobre o próprio IMI, criar algum incentivo de isenção durante um período para qualquer intervenção que seja feita e cumpra determinado tipo de requisitos além de uma reabilitação «normal»”. Já na parte da produção de energia renovável, o Porto, por exemplo, quer apoiar financeiramente, aliviando o IMI, cada kW de ligação de Unidades de Produção para Autoconsumo.

Será alguma das estratégias mais eficaz? A pergunta não será bem essa, defende João Pedro Gouveia. “Não podemos olhar só para uma dimensão. Os municípios estão em toda a linha – nas renováveis, na renovação de edifícios, na capacitação, no conhecimento e no apoio ao cidadão. O que é mais eficaz é a combinação e também a parceria entre várias entidades locais para fazerem parte da solução.”

Fotografia de destaque: © Fundação Calouste Gulbenkian, ENA, RNAE, CENSE